RELATÓRIO Nº 38/07
[1]

CASO 12.263

ADMISSIBILIDADE

MÁRCIA BARBOSA DE SOUZA

BRASIL

26 de julho de 2007 

 

I.          RESUMO

 

1.        Em 28 de março de 2000, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (doravante denominada “Comissão” ou “CIDH”) recebeu petição apresentada pelo Centro pela Justiça e pelo Direito Internacional (CEJIL) e pelo Movimento Nacional dos Direitos Humanos (MNDH)/Regional Nordeste (doravante denominados “peticionários”), com informações atualizadas em 3 de outubro de 2006, em que se alega a violação, por parte da República Federativa do Brasil (doravante denominada “Brasil” ou “Estado”), dos artigos 2, 4, 24, 25 e 1.1 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (doravante denominada “Convenção Americana”), bem como dos artigos 3, 4, 5 e 7 da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, “Convenção de Belém do Pará” (doravante denominada “Convenção de Belém do Pará”), em detrimento de Márcia Barbosa de Souza.

 

2.        A petição denuncia o Estado como responsável por violações dos direitos de Márcia Barbosa de Souza, cujo corpo foi encontrado sem vida num terreno baldio nas imediações da cidade de João Pessoa, capital da Paraíba, em 18 de junho de 1998. A polícia local iniciou uma investigação policial, concluída em 27 de agosto de 1998. Atribui-se a responsabilidade do crime a um deputado estadual, suposto amante da suposta vítima. Por esse motivo, a Procuradoria-Geral da Justiça se havia visto no início impedida de iniciar ação contra o aludido deputado, em virtude de seu foro parlamentar, ao não haver concedido a Assembléia Legislativa autorização para esse procedimento. Em 20 de dezembro de 2001, com a aprovação da Emenda Constitucional 35/2001, determinou-se que a ação penal contra parlamentares seria admitida independentemente da autorização da Assembléia Legislativa. Não obstante isso, as autoridades competentes da Paraíba não reiniciaram a ação penal até março de 2003. Transcorridos mais de 4 (quatro) anos do envio das últimas informações, a causa ainda não foi julgada e tramitada com extrema lentidão. A decisão que se venha a obter, passados mais de 8 (oito) anos da ocorrência do fato, será passível de vários recursos revisivos, o que amplia a impunidade relacionada com o fato.

 

3.        Em 26 de setembro de 2000, o Estado contestou a petição apresentada. Em 31 de outubro de 2000, enviou informação adicional sobre o assunto, esclarecendo que o Procurador-Geral do Estado da Paraíba e o Ministério Público haviam apresentado denúncia contra o deputado estadual acusado. Em duas oportunidades foi solicitado o desaforamento do deputado a fim de contra ele se instaurar ação penal, porém as solicitações foram denegadas.

 

4.        Após examinar a posição das partes à luz dos requisitos de admissibilidade dispostos nos artigos 46 e 47 da Convenção Americana, a Comissão decidiu declarar admissível o caso com relação aos artigos 4, 8.1, 24 e 25 da Convenção Americana, em conexão com a obrigação geral constante do artigo 1.1 do mesmo instrumento, bem como ao artigo 7 da Convenção de Belém do Pará. Decidiu também declarar inadmissível a petição em exame, com relação ao artigo 2 da Convenção Americana, bem como aos artigos 3, 4 e 5 da Convenção de Belém do Pará.

 

5.        A Comissão decidiu, por conseguinte, notificar as partes e tornar público este Relatório de Admissibilidade e incluí-lo em seu Relatório Anual.

 

II.         TRAMITAÇÃO PERANTE A COMISSÃO

 

6.        Em 19 de abril de 2000, a Comissão notificou o Estado da petição contra ele instaurada. A Comissão também encaminhou ao Estado as partes pertinentes da petição e levou ao seu conhecimento o instante em que começava a ser computado o prazo de 90 (noventa) dias fixado pelo artigo 34 do seu Regulamento então vigente, para sua contestação. Na mesma data comunicou-se aos peticionários o recebimento da petição por eles instaurada.

 

7.        Em 8 de agosto de 2000, o Estado solicitou prorrogação do prazo que lhe fora concedido para responder à petição, sendo a concessão da prorrogação a ele comunicada no dia 14 do mesmo mês e ano.

 

8.        Em 26 de setembro de 2000, o Estado informou a Comissão sobre a petição contra ele iniciada, sendo essa informação transmitida aos peticionários em 5 de outubro de 2000, concedendo-lhes o prazo de 45 (quarenta e cinco) dias para a apresentação de observações acerca do que se acha nela exposto. Na última data, comunicou-se ao Estado o recebimento da informação por ele encaminhada.

 

9.        Mediante nota de 31 de outubro de 2000, recebida pela Comissão em 2 de novembro do mesmo ano, o Estado remeteu informação adicional sobre o caso, a qual foi, em 20 de novembro de 2000, transmitida aos peticionários. A estes foi concedido o prazo 45 (quarenta e cinco) dias para a apresentação de observações sobre a referida informação. Na mesma data comunicou-se ao Estado o recebimento da informação em questão.

 

10.       Em 21 de dezembro de 2000, os peticionários apresentaram as observações sobre a informação adicional prestada pelo Estado. O recebimento dessa informação foi comunicado aos interessados no dia 26 do mesmo mês e ano. Nesta mesma data, as observações aludidas foram transmitidas ao Estado, ao qual foi concedido o prazo de 45 (quarenta e cinco) dias para apresentação das observações que considerasse pertinentes.

 

11.       Em 20 de maio de 2003, os peticionários remeteram informação adicional sobre o caso, cujo recebimento foi a eles comunicado em 11 de junho de 2003. A informação foi transmitida na mesma data ao Estado, a fim de que no prazo de 30 (trinta) dias apresentasse as informações que julgasse convenientes.

 

12.       Em 7 de setembro de 2006, a Comissão solicitou aos peticionários que enviassem informações atualizadas com relação ao caso e se pronunciassem sobre seu interesse em dar-lhe prosseguimento. Os peticionários responderam em 3 de outubro de 2006.

 

13.       Em 17 de novembro de 2006 o Estado solicitou prorrogação de 30 dias, a qual foi concedida em 5 de dezembro de 2006 pela Comissão. Em 19 de julho de 2007 o Estado submeteu à consideração da Comissão novas informações sobre o caso, que foram transmitidas em 25 de julho de 2007 aos peticionários para observações.
 

III.        POSIÇÕES DAS PARTES

 

  A.        Posição dos peticionários

 

14.       Os peticionários declaram que o corpo de Márcia Barbosa de Souza foi encontrado em um terreno baldio nas proximidades da cidade de João Pessoa, capital do Estado da Paraíba, em 18 de junho de 1998. Para averiguar o homicídio, a Polícia Civil do Estado da Paraíba iniciou a investigação nº 98.004184.0. Identificada a vítima, descobriu-se que tinha 20 (vinte) anos de idade, era estudante, estava desempregada e era natural da cidade de Cajazeiras, Estado da Paraíba, e filha de Severino Reinaldo de Souza e Marineide Barboza de Souza, ambos residentes na localidade aludida.

 

15.       Segundo os peticionários, a investigação, ao reconstruir os últimos passos da suposta vítima em João Pessoa, descobriu que estivera hospedada numa pousada de nome “Canta Maré”, lugar em que então recebeu várias chamadas telefônicas do referido deputado estadual, informação corroborada pelas telefonistas do local, cujas declarações prestadas na investigação encontram-se anexas. Também sustentam, de acordo com a investigação, que em 17 de junho de 1998, depois de receber um último telefonema do deputado em questão, a suposta vítima deixou a pousada para ir ao seu encontro. Horas depois, chamou do telefone celular do deputado, em cuja companhia ainda se encontrava, sua cidade natal, Cajazeiras, onde falou com uma amiga de nome Márcia e com sua família. A amiga relatou que a suposta vítima se encontrava num motel com o deputado e que havia inclusive falado com ele. A mãe declarou que a filha parecia feliz, pois havia conseguido um emprego e pretendia permanecer em João Pessoa. Este teria sido o último contato da suposta vítima com familiares e amigos.[2]

 

16.       Afirmam os peticionários que, na manhã de 18 de junho de 1998, um transeunte viu o veículo então utilizado pelo deputado atirar “algo” num terreno baldio, foi ver do que se tratava, e encontrou o cadáver da suposta vítima. Uma vez avisada a polícia, abriram-se as respectivas investigações. A perícia tanatoscópica revelou que a morte em questão foi provocada por asfixia em conseqüência de sufocamento.[3] Essa investigação, presidida pelo Delegado de Polícia Adesaldo Ferreira, foi concluída com um relatório que apontou o deputado estadual como assassino da estudante. Consta do relatório final da investigação que o deputado havia sido visto acompanhado da suposta vítima na noite anterior ao crime. Há outras provas que confirmam sua presença nas últimas horas de vida da estudante, que, tendo saído com o indivíduo citado, nunca chegou a regressar.[4]

 

17.       No dizer dos peticionários, a polícia da Paraíba remeteu os autos ao Ministério Público do Estado.[5] Como privilégio inerente a seu cargo, o então deputado gozava de imunidade parlamentar, razão por que o expediente foi entregue ao Chefe do Ministério Público Estadual, que procedeu à denúncia do caso, da qual constava uma ressalva de que a ação penal só poderia ser iniciada com a permissão da Assembléia Legislativa para que o deputado fosse processado. A investigação foi encerrada em 27 de agosto de 1998. Em 8 de outubro do mesmo ano, o Procurador-Geral de Justiça apresentou denúncia perante o Tribunal de Justiça do Estado da Paraíba contra o deputado estadual, pelo assassinato da suposta vítima, solicitando que fosse requerida a necessária autorização à Assembléia Legislativa do Estado da Paraíba, por encontrar-se o acusado no exercício de cargo na referida assembléia.[6] Em 9 de outubro desse ano, o juiz relator do caso ordenou seu encaminhamento ao escritório de “Coordenação Judicial”, para que levasse ao conhecimento da Assembléia Legislativa a petição de desaforamento, a qual foi encaminhada ao presidente do referido órgão em 14 de outubro de 1998.[7] Em 17 de dezembro de 1998, o órgão em questão expediu a resolução nº 614/98 negando o pedido de desaforamento solicitado pelo Tribunal de Justiça do Estado para proceder à instauração da acusação criminal contra o deputado estadual, sendo esta decisão publicada no Diário do Poder Legislativo em 18 de dezembro de 1998.[8] Em março de 1999, prestes a iniciar-se um novo período parlamentar, o Poder Judiciário do Estado da Paraíba apresentou à Assembléia Legislativa um novo pedido de desaforamento para o deputado em questão[9], sendo o pedido novamente denegado, sem que isso fosse publicado no Diário Oficial.

 

18.       Declaram os peticionários que a concessão do desaforamento é um ato discricionário do Poder Legislativo, assentando-se sua deliberação em votação secreta de seus membros. Esgotada esta instância, seu resultado é definitivo, pelo menos até a conclusão do período legislativo do afetado, carecendo o Poder Judiciário de competência para modificar essa decisão. A decisão legislativa de denegar o desaforamento impede que qualquer medida judicial possa ser tomada contra o deputado, não existindo no âmbito do direito positivo vigente no Estado medida alguma para combater essa situação. Ante a obstrução da via jurisdicional pela Assembléia Legislativa, e frente à inexistência de algum outro recurso cabível, as vias internas para a discussão deste caso mostram-se esgotadas. A revogação da referida resolução legislativa requer uma nova resolução que autorize o desaforamento. Denuncia-se que a posição do Poder Legislativo constituiu um entrave ao acesso à justiça para os familiares da suposta vítima, que se viram impossibilitados de instaurar a ação penal contra o suposto responsável.

 

19.       A informação adicional enviada pelos peticionários em 3 de outubro de 2006 dá conta de que, em 20 de dezembro de 2001, ocorreu no Estado uma alteração legislativa com relação à imunidade parlamentar, com a aprovação pelo Congresso Nacional da Emenda Constitucional nº 35/2001, que determinou que a ação penal contra parlamentares poderia ser admitida sem prévia autorização da câmara legislativa a que pertencem. Com essa inovação, o processo, após iniciado, deve ser comunicado ao órgão do qual o acusado é membro, que poderá suspender o curso da ação penal, caso julgue conveniente, pelo voto da maioria de seus componentes.

 

20.       Afirmam os peticionários que, com relação ao caso em apreço, em que pese a modificação referida, as autoridades competentes para dar início à ação penal no Estado da Paraíba não tomaram as medidas destinadas a retomar as atividades judiciais com vistas a elucidar a responsabilidade do crime senão em março de 2003.

 

21.       Segundo os peticionários, foi expedida resolução de “pronunciamento” (acusação) contra o ex-deputado em 27 de julho de 2005, 7 (sete) anos após a ocorrência do crime, ao considerar a justiça brasileira que havia indícios suficientes para determinar que fora ele o autor do crime. A defesa interpôs recurso contra essa decisão, o qual foi recusado. Há mais de um ano aguarda-se a inclusão do processo na pauta do Tribunal para julgamento por júri popular.

 

22.       Mencionam que, por encontrar-se o acusado aguardando o momento do julgamento em liberdade, o caso não é prioritário, pois assim dispõe o artigo 431 do Código de Processo Penal Brasileiro. Levando em conta a realidade da justiça local, afirma-se que não há expectativa de que o caso seja julgado este ano e, uma vez que se chegue a uma possível decisão condenatória, existiriam recursos a serem interpostos contra essa decisão. Por esse motivo uma condenação definitiva encontra-se a muitos anos de distância, devendo-se considerar que o homicídio de Márcia Barbosa teve lugar há mais de 8 (oito) anos.

 

23.       Os peticionários referem-se a que, apesar de o principal indiciado já não ocupar cadeira parlamentar, ainda mantém posição de influência considerável na política local do Estado da Paraíba, o que pode redundar em intervenção na imparcialidade do júri popular. A própria delonga da questão mostra o poder de intervenção do ex-deputado e seu grupo político no Poder Judiciário local, pois, em que pese a sensibilização da sociedade, não se conseguiu uma atuação imediata das autoridades responsáveis, uma vez viabilizada a possibilidade de tentar a imputação indispensável.

 

24.       Aduzem os peticionários que, transcorridos mais de 3 (três) anos da instauração da ação penal, vem ela tramitando com excessiva lentidão, levando-se em conta que ainda não foi proferida no caso decisão alguma de mérito. Esse atraso, afirmam, reflete o modo por que o Poder Judiciário do Brasil considera os casos de violência contra a mulher. Superada a questão da imunidade parlamentar, a presente hipótese ilustra o grave padrão de discriminação em matéria judicial que se verifica nos casos de agressão e homicídio praticados contra mulheres. Após se referirem às situações consideradas pela Comissão, sustentam que o caso que nos ocupa encontra-se inserido num contexto de impunidade com relação a situações em que se vê implicada a violência contra a mulher, cuja característica particular consiste na extrema lentidão da tramitação da ação penal instaurada contra o suposto autor.

 

25.       Os peticionários chamam a atenção para a prática de violações dos direitos consagrados nos artigos 4, 8, 24, 25, 1.1 e 2 da Convenção Americana, bem como nos artigos 3, 4, 5 e 7 da Convenção de Belém do Pará e solicitam que seja declarada a responsabilidade do Estado com relação a esse aspecto, com a reparação cabível.

 

B.         Posição do Estado

 

26.       O Estado afirma que, segundo o Procurador-Geral de Justiça do Estado da Paraíba, Doutor José Paulo Neto, o Ministério Público apresentou denúncia contra o deputado estadual, principal suspeito do homicídio da estudante Márcia Barbosa de Souza. Em duas oportunidades, em 14 de outubro de 1998 e 31 de março de 1999, o Tribunal de Justiça da Paraíba solicitou à Assembléia Legislativa do referido Estado autorização para a instrução de ação penal contra o citado parlamentar, sendo ambos os pedidos denegados pelo Poder Legislativo estadual. Informa, ademais, que a Secretaria de Direitos Humanos examina a possibilidade de tomar eventuais providências no caso em apreço.

 

27.       Na informação adicional recebida em 2 de novembro de 2000, declarou-se que durante a Reunião Ordinária nº 126 do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (órgão colegiado criado pela Lei 4.319), realizada em 10 de outubro do mencionado ano, um dos temas considerados foi o assassinato da suposta vítima. Na ocasião foi designada pelo Conselho uma Comissão constituída pela Professora Flávia Piovesan e pelo Doutor Percílio de Souza Lima Neto, encarregada de atuar diretamente na obtenção de informação sobre o caso. A ela caberá, segundo declaram à Comissão, estabelecer contato com a Assembléia Legislativa do Estado da Paraíba, a fim de mostrar que a gravidade das circunstâncias do caso levou a que o Estado brasileiro fosse denunciado ante esta Comissão pela violação de direitos e garantias dispostos na Convenção Americana. O Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana também determinou a realização de gestões junto aos poderes executivo, judiciário e legislativo estaduais com a finalidade de ressaltar a sensibilidade do caso e a importância conferida pelo Governo Federal à punição dos responsáveis pelo crime e à reparação dos danos causados aos familiares da vítima, o que culminou, em dezembro de 2001, com a aprovação pelo Congresso Nacional Brasileiro da Emenda Constitucional nº 35/2001 que alterou o instituto da imunidade parlamentar disposto na Constituição Federal.

 

28.       Na informação enviada em 19 de julho de 2007, o Estado salientou que a ação penal contra Aércio Pereira de Lima encontra-se na segunda etapa, denominada fase de julgamento. O julgamento pelo Tribunal do Júri foi marcado para 26 de setembro de 2007. O Estado também reivindicou que o caso seja declarado inadmissível, uma vez que não foram cumpridos os requisitos de admissibilidade dispostos no artigo 31.1 do Regulamento da CIDH e no artigo 46.1, a, da Convenção Americana.

 

IV.        ANÁLISE SOBRE COMPETÊNCIA E ADMISSIBILIDADE

 

A.         Competência rationae personae, rationae loci, rationae temporis e rationae materiae
da Comissão

 

29.       Os peticionários sustentam que o Estado violou os direitos consagrados nos artigos 2, 4, 24 e 25 da Convenção Americana[10] e nos artigos 3, 4, 5 e 7 da Convenção de Belém do Pará,[11] em detrimento da suposta vítima e seus familiares.

 

30.       Os peticionários estão facultados pelo artigo 44 da Convenção a apresentação de denúncias perante a CIDH. A petição menciona como suposta vítima Márcia Barbosa de Souza, cidadã do Estado brasileiro, motivo por que a Comissão tem competência rationae personae para examinar a petição.

 

31.       A Comissão considera que tem competência rationae materiae, rationae loci e rationae temporis por tratar a petição de direitos protegidos pela Convenção Americana e pela Convenção de Belém do Pará, ambas em vigência no momento em que tiveram lugar os fatos, vinculantes com respeito à República Federativa do Brasil.

 

32.       Com relação à competência referente à aplicação da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, “Convenção de Belém do Pará” (CVM), a Comissão tem competência em geral por se tratar de um instrumento interamericano de direitos humanos e, ademais, pela que a ela atribuem especificamente os Estados no artigo 12 da referida Convenção, que diz: 

Qualquer pessoa ou grupo de pessoas, ou qualquer entidade não-governamental juridicamente reconhecida em um ou mais Estados membros da Organização, poderá apresentar à Comissão Interamericana de Direitos Humanos petições referentes a denúncias ou queixas de violação do artigo 7 desta Convenção por um Estado Parte, devendo a Comissão considerar tais petições de acordo com as normas e procedimentos estabelecidos na Convenção Americana sobre Direitos Humanos e no Estatuto e Regulamento da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, para a apresentação e consideração de petições.

B.         Requisitos de admissibilidade

 

1.         Esgotamento dos recursos internos

 

33.       O artigo 46.1, a, da Convenção dispõe o seguinte: “para que uma petição ou comunicação apresentada [...] seja admitida pela Comissão, será necessário: a) que hajam sido interpostos e esgotados os recursos da jurisdição interna, de acordo com os princípios do direito internacional geralmente reconhecidos”. No entanto, o inciso 2 determina que essas disposições não se aplicarão quando:

 

a)         não existir, na legislação interna do Estado de que se tratar, o devido processo legal para a proteção do direito ou direitos que se alegue tenham sido violados;

b)         não se houver permitido ao presumido prejudicado em seus direitos o acesso aos recursos da jurisdição interna, ou houver sido ele impedido de esgotá-los; e

c)         houver demora injustificada na decisão sobre os mencionados recursos.

 

34.       Sem entrar na análise dos argumentos desenvolvidos pelas partes acerca da suposta violação das garantias judiciais e proteção judicial, a Comissão Interamericana observa de maneira preliminar que, até a data de aprovação deste relatório, transcorreram mais de 8 (oito) anos do assassinato de Márcia Barbosa. O fato foi devidamente denunciado às autoridades, mas nem uma investigação policial nem uma imputação fiscal puderam ser realizadas, uma vez que o suspeito gozava de imunidade parlamentar. Este último obstáculo foi superado com o término do mandato parlamentar do suspeito. Ademais, com a aprovação da Emenda Constitucional nº 35/2001, foi apresentada acusação conta o ex-deputado em 27 de julho de 2005. Cumpre também salientar que o Estado reconhece que os fatos foram denunciados.

 

35.       Tem-se por certo que as ações tentadas contra o suspeito foram retomadas recentemente, em março de 2003, pois o Estado não refutou esse fato. Assinale-se que até a data da preparação deste relatório 4 (quatro) anos haviam transcorrido desde a retomada das ações judiciais e recentemente o caso fora incluído para julgamento em 26 de setembro de 2007 pelo órgão competente. Desde a ocorrência do fato punível, conforme se disse, transcorreram mais de 8 (oito) anos sem que se determine o responsável por sua autoria.

 

36.       A Comissão Interamericana também observa que os peticionários alegam que os fatos deste caso se dão num contexto de casos em que mulheres são vítimas de violência, o que se materializa numa tramitação excessivamente lenta, que redunda na impunidade dos autores desses atos. Embora o Estado alegue que o andamento do processo judicial se dá de acordo com a lei, não apresentou informação que explique ou justifique os lapsos temporais no processo judicial.

 

37.       À luz do acima exposto e do que faz parte do expediente de que consta este assunto, a Comissão Interamericana constata – para efeitos da admissibilidade – que houve um atraso injustificado na decisão dos órgãos jurisdicionais brasileiros com respeito aos fatos denunciados. A CIDH, por conseguinte, aplica à matéria a exceção do esgotamento dos recursos da jurisdição interna disposta no artigo 46.2, c, da Convenção Americana.

 

2.         Prazo para apresentação de petição

 

38.       Conforme o artigo 46.1, b, da Convenção Americana, constitui requisito de admissibilidade a apresentação das petições no prazo de 6 (seis) meses a partir da notificação ao suposto prejudicado da sentença que esgote os recursos internos.

 

39.       O artigo 32.2 do Regulamento da Comissão consagra que, nos casos em que sejam aplicáveis as exceções ao requisito do prévio esgotamento dos recursos internos, a petição deverá ser apresentada num prazo razoável, a critério da Comissão : “…Para tanto, a Comissão considerará a data em que haja ocorrido a presumida violação dos direitos e as circunstâncias de cada caso…”.[12]

 

40.       Neste caso, a Comissão pronunciou-se supra sobre a aplicabilidade à situação da exceção ao requisito do esgotamento dos recursos internos. A Comissão Interamericana deve, por conseguinte, determinar se a petição foi apresentada num lapso de tempo razoável, segundo dispõe a norma citada.

 

41.       De acordo com o exposto nos parágrafos acima, como a petição foi apresentada em 28 de março de 2000, transcorridos quase 2 (dois) anos da ocorrência do crime, a Comissão considera que a apresentação observou os parâmetros de razoabilidade a que faz alusão a norma em questão, considerando-se o espaço de tempo transcorrido desde a referida ocorrência, sem que tenha sido julgado o processo judicial doméstico que dele trata, o que, como se disse, configura uma clara exceção à exigência do esgotamento dos recursos internos, sem prejuízo da análise que será realizada por este órgão com relação a possíveis violações dos artigos 8 e 25 da Convenção Americana.

 

3.         Duplicação de procedimentos e coisa julgada internacional

 

42.       Não se depreende do expediente que a matéria da petição se encontre pendente de outro procedimento de acordo internacional ou que reproduza alguma petição já examinada por este ou outro órgão internacional. Cabe, portanto, dar por cumpridos os requisitos dispostos nos artigos 46.1, c, e 47, d, da Convenção.

 

4.         Caracterização dos fatos alegados

 

43.       Para efeitos de admissibilidade, a CIDH deve decidir se se expõem fatos que poderiam caracterizar uma violação, conforme determina o artigo 47, b, da Convenção Americana, se a petição é “manifestamente infundada” ou se é “evidente sua total improcedência”, segundo a alínea c do mesmo artigo.

 

44.       A norma de apreciação desses elementos é diferente da que se exige para decidir sobre os méritos de uma denúncia. A CIDH deve realizar uma avaliação prima facie para examinar se a denúncia fundamenta a aparente ou potencial violação de um direito garantido pela Convenção e não para estabelecer a existência de uma violação. Esse exame é uma análise sumária que não implica um prejulgamento ou uma antecipação de parecer sobre o mérito.[13] Como nesta hipótese encontramo-nos ante um relato que descreve uma possível violação de direitos básicos como os que se referem à vida, à igualdade perante a lei, às garantias judiciais, ao acesso à justiça e aos direitos da mulher, inerentes à suposta vítima, todos eles com relação à obrigação geral constante do artigo 1.1 da Convenção Americana, cumpre dedicarmo-nos ao exame da presente controvérsia.

 

45.       A Comissão não julga que a petição seja “manifestamente infundada” ou que seja “evidente sua improcedência”. Por conseguinte, a CIDH considera que, prima facie, os peticionários comprovaram os elementos necessários à procedência da admissibilidade.

 

46.       No entanto, os peticionários denunciam que teria ocorrido um suposto descumprimento da obrigação do Estado disposta no artigo 2 da Convenção Americana, relativa ao dever de adotar disposições de direito interno para assegurar os direitos constantes do referido instrumento. De acordo com a informação apresentada pelos peticionários em 3 de outubro de 2006, a Comissão observa que em 20 de dezembro de 2001 houve uma alteração legislativa interna com relação à imunidade parlamentar, com a aprovação pelo Congresso Nacional da Emenda Constitucional nº 35/2001. Essa emenda determinou que a ação penal contra membros do Poder Legislativo poderia ser admitida sem prévia autorização da Câmara a que pertencem, com o que se teria reparado a falha denunciada. Por esse motivo, cumpre decretar inadmissível a análise de um potencial descumprimento da obrigação em questão.

 

47.       Deve ser também levado em conta pela Comissão que os peticionários denunciam supostas violações dos direitos consagrados nos artigos 3, 4 e 5 da Convenção de Belém do Pará.

 

48.       Tal como foi citado acima, o artigo 12 da Convenção de Belém do Pará dispõe que são justiciáveis perante os órgãos do Sistema Interamericano todas as petições em que se denunciem atos violatórios dos direitos garantidos no referido instrumento, expressamente no artigo 7, que estabelece os compromissos principais.

 

49.       Aplicando-se o que dispõe o artigo 12 da Convenção de Belém do Pará acima transcrito, cumpre a este órgão declarar inadmissíveis as supostas violações dos direitos constantes dos artigos 3, 4 e 5 do citado instrumento.

 

50.       Em virtude do exposto, a Comissão Interamericana considera que, a serem comprovados os fatos expostos com relação à violação do direito à vida, às garantias judiciais, ao acesso à justiça e aos direitos da mulher, contra a suposta vítima e seus familiares, caracterizaria este caso uma possível violação das garantias resguardadas pelos artigos 4, 8.1 e 25 da Convenção Americana, bem como do artigo 7 da Convenção de Belém do Pará, pois prima facie, com a descrição fática da situação, comprovou-se, de modo verossímil, que nos encontramos frente a uma possível violação dos direitos individuais, garantidos pelas aludidas normas.

 

51.       A CIDH também considera que os fatos expostos caracterizariam possíveis violações do artigo 24 da Convenção Americana em conexão com o artigo 1.1 do referido instrumento. A CIDH observa que os peticionários alegam que os fatos relatados ocorreram num contexto de impunidade ante atos violentos por parte da administração da justiça, que afeta desproporcionalmente as mulheres como grupo e inclina-se à repetição desses atos. Nesse padrão de impunidade, manifestam-se atitudes de funcionários judiciais baseadas em conceitos socioculturais discriminatórios que atingem principalmente a mulher. O padrão mencionado se argumenta tem como conseqüência atrasos extremos e injustificados no processamento de casos de violência contra a mulher, o que supostamente ocorre neste caso, apesar da reforma legislativa relativa à imunidade parlamentar em 2001.

 

52.       As possíveis violações serão analisadas em conexão com a obrigação geral disposta no artigo 1.1 da Convenção Americana.

 

V.         CONCLUSÕES

 

53.       Com fundamento nas considerações de fato e de direito expostas, e sem prejulgar o mérito da questão, após concluir que o presente caso atende aos requisitos de admissibilidade enunciados nos artigos 46 e 47 da Convenção Americana,
 

A COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS,

 

DECIDE:

 

1.         Declarar admissível a petição em análise, com relação aos artigos 4 (direito à vida), 8.1 (direito a gozar de garantias judiciais), 24 (direito à igualdade perante a lei) e 25 (direito a gozar de proteção judicial) da Convenção Americana, em conexão com a obrigação geral constante do artigo 1.1 do mesmo instrumento, bem como ao artigo 7 da Convenção de Belém do Pará.

 

2.         Declarar inadmissível a petição em exame, com relação aos artigos 2 da Convenção Americana e 3, 4 e 5 da Convenção de Belém do Pará.

 

3.         Comunicar esta decisão ao Estado e ao peticionário.

 

4.         Iniciar a tramitação sobre o mérito da questão.

 

5.         Publicar esta decisão e incluí-la no Relatório Anual a ser apresentado à Assembléia Geral da OEA.

 

Dado e assinado na sede da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, na cidade de Washington, D.C., aos vinte e seis dias do mês de julho de 2007. (Assinado: Florentín Meléndez, Presidente: Paolo Carozza, Primeiro Vice-presidente; Victor Abramovich, Segundo Vice-presidente; Evelio Fernández Arévalos; Clare K. Roberts e Freddy Gutiérrez, membros da Comissão).


[1] Conforme o disposto no artigo 17.2, a, do Regulamento da CIDH, o Comissionado Paulo Sérgio Pinheiro, de nacionalidade brasileira, não participou da decisão sobre esta petição.

[2] Relatório final da Delegacia de Crimes contra a Pessoa. Anexo 1 da petição.

[3] Acusação apresentada pelo Ministério Publico contra o ex-deputado. Anexo 2 da petição.

[4] Relatório final da Delegacia de Crimes contra a Pessoa. Anexo 1 da petição.

[5] Idem nota anterior.

[6] Acusação apresentada pelo Ministério Público contra o ex-deputado. Anexo 2 da petição.

[7] Ofício do Poder Judiciário à Assembléia Legislativa solicitando desaforamento. Anexo 3 da petição.

[8] Resolução da Assembléia Legislativa denegando o desaforamento. Anexo 4 da petição.

[9] Novo ofício do Poder Judiciário solicitando o desaforamento à Assembléia Legislativa. Anexo 5 da petição.

[10] Ratificada pelo Brasil em 25 de novembro de 1992.

[11] Ratificada pelo Brasil em 27 de novembro de 1995.

[12] CIDH, Relatório nº 31/ 99, Caso 11.763, Massacre de Plan de Sánchez, Admissibilidade, 11 de março de 1999.

[13] CIDH, Relatório n° 21/04, Petição 12.190, Admissibilidade, José Luis Tapia González e outros, Chile, 24 de fevereiro de 2004, par. 33.